'Visão de golo' é o espaço de opinião semanal de Rui Águas, treinador e antigo avançado internacional português
Fomos do categórico ao sofrido, por culpa própria, no começo da qualificação da seleção para o Mundial. Sobre a fase final recaem esperanças que se vão repetindo e que decorrem, com naturalidade, do extraordinário grupo de jogadores de que atualmente dispomos. Além do muito talento existente, a mistura de idades dos convocados também dá, sem dúvida, o equilíbrio e a maturidade que se pretende para pensar nos mais altos voos.
//Atrás
Nos dias de hoje, Diogo Costa e Gonçalo Inácio são as exceções entre os convocados que foram titulares, que ainda podemos ver por cá. No banco, os outros dois resistentes do nosso campeonato, curiosamente nas mesmas posições dos colegas titulares: Rui Silva e António Silva. Nas laterais, Cancelo e Mendes garantem a amplitude que qualquer ataque procura, acrescentando o seu poder ofensivo ao colega com quem dividem a ala. Numa defesa cuja segurança e qualidade é habitualmente difícil de superar, a bizarra variação tática introduzida em Budapeste por Martinez, quase punha em causa a vitória. Jogar só com um só central de raiz dificilmente é boa ideia ou dá resultado. O menos culpado é, claro está, Ruben Neves, o adaptado, que Martinez conseguiu que coubesse na equipa.
//Meio
Enquanto isso, é a versatilidade dos médios de alto nível de que a seleção dispõe que permite prescindir de um médio defensivo típico. Vitinha, um portento de técnica, vem sendo normalmente a unidade central mais recuada, fazendo lembrar o italiano Pirlo, de quem alguns se lembrarão. Foi esse extra médio que revolucionou o meio campo do Milan, há já uns anos, iniciando de trás a construção atacante, com o mesmo talento que o tinha notabilizado enquanto unidade predominantemente ofensiva. Voltando aos nossos, João Neves e Bruno Fernandes completam com Vitinha um trio de referência do futebol europeu atual, que dá gosto ver jogar. Têm tudo.
//Na frente
Quanto ao ataque, fala-se, claro, invariavelmente da idade e de algum individualismo de Ronaldo, cuja presença poderá, diz-se, condicionar as opções de passe dos seus colegas. Não digo que não, pese os exageros habituais dos críticos, porém, a sua eficácia continua viva e a intuição também. Quer queiram ou não, ainda está por aparecer alguém que justifique a sua substituição. Um concorrente que se afirme sem reservas e que marque golos numa boa equipa. Para já, não vejo quem. Quanto a João Félix é uma incógnita que se mantém. Dois golos para recordar, mas só isso, até ver. Os sinais exteriores parecem mostrar a mesma imaturidade que parece eterna, que receio, não queira dizer uma retoma do jogador, mas unicamente um sucesso pontual. Um ala na direita e um avançado esquerdo no lado oposto, foi o que vimos no primeiro jogo. Quis dizer, no caso, uma maior proximidade de Félix a Ronaldo. Diogo Jota era esse acrescento na área que agora teve Félix como intérprete. O jogo aéreo de Ronaldo reforçado antes por Jota e na Arménia por Félix. As outras opções para a esquerda são diferentes. Desde Leão, Conceição ou Neto, mas de diferente perfil, estes para abrir a ala e driblar.
//Acomodar
Confirma-se a tendência de alguns treinadores em fazer caber nas suas equipas os melhores jogadores ou dar largas à sua criatividade. Talvez João Neves tenha protagonizado como ninguém esta teoria, pelo seu discutido encaixe como lateral direito num dos últimos compromissos da seleção nacional. O mesmo Neves, já tinha sido adaptado, ainda no Benfica, por Roger Schmidt à direita, mas então num sistema de três centrais. A humildade, o talento e também a idade do atleta, ajudam a explicar certas opções estranhas dos treinadores, que para as fazer, também consideram a natureza e disponibilidade do jogador em causa. Em Budapeste tivemos um novo exemplo deste fenómeno.
//Novos tempos
Se olharmos ao último onze de Portugal, verificamos que Cancelo e Pedro Neto são dois atletas cujo trajeto mais visível se iniciou fora do país, em função da cobiça que o seu potencial cedo despertou em países de maior poder económico. Antigamente era impensável. Cancelo no Benfica e Neto no Braga, fizeram um par de jogos cada um pelos seus clubes formadores, mas deram-se a conhecer verdadeiramente aos adeptos portugueses, quando já cá não estavam. No tempo em que joguei, raro era o internacional que não jogava em Portugal. Os então chamados blocos do Benfica e FC Porto dividiam os convocados, constituindo, na verdade, um grupo mais rival que solidário. Hoje, o clubismo exagerado da altura é anulado pela realidade do mercado.
//Mais perto que longe
Aquilo que aconteceu recentemente a Sudakov, a última aquisição do Benfica, e à sua família, faz-nos lembrar a infeliz realidade que se vive em vários pontos do mundo, neste caso, a invasão da Ucrânia. A guerra, pela sua duração, tende em tornar-se uma triste normalidade, com que diariamente nos confrontamos, mas que já vulgarizamos. Muita gente anónima morre, mas já quase só representa um número. O acontecido em Kiev é só mais um, mas reaproxima o conflito do nosso país, porque as vítimas desta vez têm nome. Entretanto, depois do susto sofrido, o jovem jogador do Benfica declinou a dispensa da sua seleção para jogar e esta sua personalidade acabou premiada com a obtenção do único golo da Ucrânia, no Azerbaijão. Lembrar que o jogador, já vivera há pouco a traumatizante perda do seu pai, a quem dedicou emotivamente o golo obtido. Melhores e mais felizes dias virão para este jovem talento.

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